5.9.09

4.9.09

O som do salto,
sapato
machuc(ando) o piso,

anuncia o perfume
que fica
silhueta rítmica
que vai
que passa

e nao para,nunca para mim
me para
para sempre
num segundo.

11.3.09

con tem po ra neaarte


Por Mariana Sgarioni | Fotos Cia de Foto

Como é possível classificar uma obra de arte? De que maneira essa obra se torna reconhecida? E, afinal de contas, o que pode ser chamado de arte? Por mais que estejam presentes em várias discussões sobre cultura, essas questões dificilmente são respondidas de forma objetiva. "Não espere uma resposta certeira e matemática", brinca Paulo Sergio Duarte, curador da exposição Rumos Artes Visuais - Trilhas do Desejo, que apresenta, até maio, no Itaú Cultural, em São Paulo, os artistas premiados na edição 2008-2009 do programa.

Além de curador, Duarte é crítico, professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Desde 1973, vem se debruçando em leituras e estudos sobre a produção contemporânea. Na época estava radicado em Paris por causa do regime militar brasileiro e escreveu seu primeiro artigo sobre o artista Antonio Dias. A partir daí, publicou livros, deu aulas, e é hoje uma referência no que diz respeito à arte brasileira. Neste mês, lança seu livro, Arte Brasileira Contemporânea - Um Prelúdio (Silvia Roesler Edições de Arte e Plajap), que virá acompanhado de CD-ROM e DVD dirigido por Murilo Salles. "Resolvi explicar a arte para meus amigos engenheiros, advogados e médicos", diverte-se este bem-humorado paraibano que mora no Rio de Janeiro, referindo-se ao didatismo de sua obra. Com o mesmo bom humor e um caldeirão de referências históricas, Duarte pontua esta entrevista com observações como "a arte deve nos mobilizar, mostrar que somos incompletos, que nos falta alguma coisa. Isso sim é arte".

O que é ser contemporâneo? Qual é o limite da modernidade?
Há fatores que indicam que certos limites foram alcançados na modernidade. Do ponto de vista moral e ético, há o limite dado por dois fenômenos históricos marcantes: o holocausto e as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O holocausto porque nunca antes uma máquina do Estado havia sido colocada a serviço de uma ideologia que pretendia a pureza étnica e que sacrificou 6 milhões de pessoas. O outro limite (o das bombas) é dado quando os Estados Unidos, a maior democracia do mundo, a mais avançada estrutura política e econômica, decidem matar dezenas de milhares de civis em poucos segundos para acabar com a Segunda Guerra. No campo da arte, a maturidade da modernidade se dá logo no início do século XX. Vemos três aspectos completamente diferentes. O primeiro é dado por um sujeito da razão. Ele atua na arte acreditando fortemente nas conquistas da ciência e da técnica e pensa que isso pode resultar num universo mais harmonioso, numa vida melhor. Esse horizonte é marcado pelo movimento construtivista. Um segundo ponto é o sujeito da vontade, que critica esse universo da razão, aponta para a sociedade e mostra que toda a ciência e a técnica não melhoraram a vida. É uma forma de romantismo que se manifesta com muita clareza no predomínio dos valores da existência humana sobre os puramente racionais, e que é muito forte no expressionismo alemão. Essa linha é bastante clara em todo o século XX. Um terceiro aspecto, que tem grande força até hoje, é o sujeito da crítica radical da cultura. Ele aparece na Primeira Guerra, no dadaísmo, que se desdobra no surrealismo. Trata-se de uma clara negação de que os valores racionais governam o ser humano. Para essa corrente, somos governados por forças interiores às quais não temos acesso. É o inconsciente, impregnado pela descoberta freudiana. A questão trazida por Duchamp é tão importante que merece um capítulo à parte. Embora ele atue na crítica radical da cultura, também coloca problemas do ponto de vista cognitivo e até epistemológico da arte. Sua contribuição tem sido subestimada por diversos críticos, mas seu valor é o de colocar limites no que é arte, onde ela termina e onde começa o que não é arte. É preciso uma leitura mais detalhada de Duchamp do que essa que vem sendo feita hoje - colocam-se as conquistas desse artista de uma forma prosaica, quando não, leviana.



Como é possível estabelecer parâmetros de avaliação para a arte?
Toda avaliação estética foi e vai ser um juízo de valor. Se assim é, ela será sempre de natureza subjetiva. Não existem critérios objetivos, nem houve, nem nunca vai haver, para avaliar uma obra de arte, seja ela qual for. O que existem são consensos, que são estabelecidos por uma coletividade que está de acordo com certos valores. Um exemplo: a Nona [sinfonia] de Beethoven. Pode-se tocar essa música no Japão, na África do Sul, no Marrocos, nos Estados Unidos ou no Brasil que sempre vai haver um consenso. Ou seja: grande quantidade de pessoas estará de acordo que aquela música tem valor, agrada, é importante. Antes de escutar aquilo, a pessoa era uma. E, depois de escutar, ela virou outra, percebendo ou não essa mudança. O critério de avaliação é dado, também, pela experiência da arte. Não há outra forma de acesso à arte que não seja fluindo a sua experiência. Posso ter a experiência da queda de um corpo sem me jogar da janela. Mas não posso "fazer" a experiência de uma música, um poema, um romance, uma pintura, uma instalação sem ter fluido aquela experiência. A descrição de um poema não é o poema. A fotografia de uma pintura não é a pintura. A escrita da pauta da música não é a música. Com base na experiência da arte se chega aos consensos. Grande quantidade de pessoas percebe que aquela experiência é importante, que determinada obra é melhor que outra. Existe a possibilidade de demonstrar isso como uma equação matemática? Não. Mas temos valores históricos estabelecidos em padrões que dizem que uma obra é melhor que outra. São critérios subjetivos armazenados numa experiência coletiva. Então, para estabelecer que um trabalho artístico é melhor ou pior que outro, em primeiro lugar é preciso ver a experiência coletiva de um consenso que se reúne em torno de determinadas obras. Essa experiência da arte só se faz pela repetição. Quem vai a uma exposição uma vez por ano não entende de arte. Quem lê um livro de poesia por ano e diz que gosta de poesia não entende desse gênero. Quem gosta de música e não a escuta todo dia por falta de tempo não tem a experiência da música. Pode até gostar, mas não tem a experiência. A repetição é fundamental. Os conceitos se formam pela repetição da experiência. Portanto: não existe critério objetivo, mas existe a possibilidade de reunir consensos em torno de certas questões.

Como o senhor avalia o cenário da arte contemporânea brasileira e como o país se insere no contexto mundial?
A arte contemporânea tem uma história e é um processo que vem desde cinco décadas. A arte brasileira é uma das que têm mais vitalidade no mundo contemporâneo. Ela tem o poder de compreender claramente o seu tempo. Isso se dá numa experiência radical de passagem da modernidade à contemporaneidade, materializada na obra de dois artistas: Lygia Clark e Hélio Oiticica. Há outros desdobramentos positivos nos anos 1970, com obras de Antonio Dias, Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Tunga, José Resende e Carmela Gross. São configurações muito poderosas do mundo presente. Isso veio alimentando as gerações mais jovens, sempre estimuladas por eles, que foram elaborando suas próprias questões. O que dificulta uma maior clareza da força da arte contemporânea brasileira é o vazio institucional que o país vive. A produção contemporânea tem presença rarefeita nos principais museus do Brasil. Coisas estão acontecendo, como o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim (MG), mas ainda falta um peso, uma densidade. No contexto mundial, está começando a haver um reconhecimento, artistas brasileiros estão sendo citados em bibliografias internacionais do universo acadêmico. Hoje já existe um importante acervo brasileiro lá fora. A aquisição da coleção Adolpho Leirner [pelo Museum of Fine Arts, Houston, Estados Unidos] é significativa, e um artista vivo e atuante como Cildo Meireles ter uma exposição retrospectiva na Tate Modern, Londres [encerrada em janeiro], é um reconhecimento da contribuição dessa arte contemporânea. Duas obras que estão entre as melhores de arte contemporânea que vi nos últimos tempos são de artistas brasileiros: a instalação de Tunga A Luz de Dois Mundos, no Louvre, Paris, em 2005, e Babel, de Meireles, na Tate. São obras que representam o melhor que existe em arte e política nos dias de hoje: não são panfletárias, são indiretas, com uma crítica contundente à situação do mundo atual.

É possível identificar alguma particularidade da arte contemporânea brasileira no plano global?
Tenho certa dificuldade de indicar traços tipicamente brasileiros na arte mais atual. Existe até um esforço, há gente rastreando isso. Uma das recentes teorias seria a da improvisação, a capacidade de improvisar. Mas isso não é bem brasileiro, é de todo o terceiro mundo. Ocorre em todo lugar, não é uma exclusividade nossa. A "arte da gambiarra", como se diz, é apontada como uma característica nacional. Eu não acho. Os grandes artistas brasileiros, aliás, não se caracterizam por essa improvisação. Há muito cálculo, estudo. Creio que é brasileiro porque é feito aqui, só por isso.

[entenda o que é gambiarra lendo o Glossário realizado pelo crítico Guy Amado para esta edição]

Qual o caminho que essa arte aponta?
Não tenho capacidade para apontar nenhum horizonte. Mas acredito que haja alguns fenômenos negativos, entre eles a questão do mercado. Quando a arte se torna uma commodity, ela é exemplo da mercadoria por excelência, passa a se constituir como um atrativo diferente do que era antes, quando era somente uma produção de conhecimento que não se podia ter por meio da ciência nem da religião. Quando passa a ser um símbolo de vigor e poder de um tipo de sociedade, ela vira a mercadoria maior. Em segundo lugar, há uma entrada muito forte do universo da arte na indústria do lazer e do entretenimento, coisa que não existia antes. Os museus não eram projetados como são agora: a Tate Modern esperava no primeiro ano de funcionamento 1 milhão de visitantes. Teve 5 milhões. Quando se chega a esses números, evidentemente a arte passa a ocupar um lugar diferente do que ocupava antes. Isso traz coisas muito positivas e muito negativas. Uma das positivas é a dessacralização: vai-se a uma exposição como quem liga o rádio em casa. O lado negativo é que essa massificação não implica a realização da experiência da arte, que falei anteriormente. O fato de passar em frente da Mona Lisa não quer dizer que você a viu. É preciso uma retomada da arte como um conhecimento que só ela pode nos dar. Não sei onde vai dar isso. Sinto-me tão perdido quanto qualquer leigo diante do horizonte contemporâneo do mundo.

Mas existem tendências...
Sim, claro. O que vemos agora, por exemplo, é o império da imagem. Seja fixa ou em movimento. Daí o peso enorme da fotografia e do vídeo na arte contemporânea. São veículos imagéticos que a pessoa olha e se identifica imediatamente. Esse império herdado do mundo da publicidade, da indústria da comunicação, é uma tendência evidente. Outra coisa que é muito clara é a vocação para o espetáculo, para o espetacular. Não há como deixar de ver certas coisas. O artista cria uma escultura de 15 metros de altura, o público se mobiliza para vê-la, lógico. Uma queda-d'água numa cabaninha, que se tem de olhar através de um orifício, é uma coisa. Mas uma cachoeira inteira no Rio Hudson, que custou 20 milhões de dólares, faz com que seja inevitável que vejam aquilo, vai chamar atenção. Há, ainda, uma inteligência cromática característica. O Brasil é herdeiro de uma tradição recente, mas muito rica, materializada nas obras de Volpi, uma grande inteligência cromática. As paletas de hoje são mais decididas, cores que vacilam menos. Em compensação, perdem em sutilezas e nuances. São cores afirmativas, vêm da experiência cotidiana, do monitor da televisão, do outdoor publicitário. Isso gera outra percepção.

E a tecnologia, também não é uma tendência?
É inevitável que um garoto formado no universo digital, que jogue videogame diariamente, ao se tornar artista, transporte essa experiência perceptiva para a obra. São experiências acústicas, sonoras e visuais que ele teve na infância. Isso não muda em nada o que temos que exigir de uma obra de arte: de que maneira aquele objeto altera a minha experiência depois que eu o experimento. O que aquilo me mobiliza, o que anuncia, o que me falta. Muitas vezes o papel da obra de arte é apontar algo que falta em mim mesmo. A obra não vai me preencher, mas apontar que não estou completo, pois sequer eu imaginava que essa experiência seria possível. Ou seja, não sou completo como pensava que era. Estou cheio de vazios e a obra está lá para mostrá-los. A graça da arte é apontar para nossas incompletudes e isso independe do meio: pode ser uma estátua de mármore grega ou um jogo de videogame. Se tiver força poética, a obra vai permitir essa experiência

17.2.09

Filósofos brasileiros são alienados culturais, tabeliçoes de idéias, escreventes e nao escritores





"(...) O papel dos filósofos pertencentes ao meio subdesenvolvido na compreensão de seu mundo, das razões da tal estado e na proposta de rumos e ações políticas e culturais transformadoras da realidade ambiente é decisivo. Para isso, porém, faz-se mister, antes de tudo, compreenderem o que significa ser filósofo no país pobre e dependente. A primeira exigência consiste em admitir que não pode significar a mesma coisa ser filósofo no país desenvolvido, dominador e autônomo e no que ainda vegeta no subdesenvimento, na ignorância, do saber letrado e na carência de soberania e capacidade de definição e direção de seu processo de existência enquanto ser histórico particular. No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a realidade, precisa ser analfabeto. Não que, evidentemente, ignore a habilidade de ler e escrever - mas, sabemos bem não ser exclusivamente esta falta que constitui o anlfabetismo -, e sim porque coloca EM PRIMEIRO LUGAR, NA TENTATIVA DE CONCEBER E INTERPRETAR O MUNDO AS CONDIÇÕES REAIS DELE, ENTRE AS QUAIS SE INCLUI A DE SER UM MUNDO DE ANALFABETOS. Considerará a acumulação da cultura estranha e as diversas cogitações, passadas e presentes, conhecida pelo estudo dos livros, uma fonte SUBSIDIÁRIA, embora indispensável, para a formaçao da consciencia de si. Mas terá de APRENDER MUITO MAIS COM O QUE VÊ DO QUE COM O QUE LÊ. A consciencia filosófica só será legítima se explicar o estado do seu meio, não por um reflexo passivo exterior, mesmo verídico, mas PELA APREENSÃO DA ESSÊNCIA DO SER SOCIAL DO QUAL O PENSADOR É PARTE. O filósofo tem de identificar-se com as massas analfabetas, constituir a figura aparentemente paradoxal do analfabeto alfabetizado, para alcançar as bases nas quais fundar seu pensamento com máximas possibilidades de legitimidade. Tal como tem sido redigidos até hoje os poucos, confusos e irrelevantes ensaios designados no país atrasado pelo nome de "filosofia", são uma modalidade de ALIENAÇÃO CULTURAL EM FORMA PRATICAMENTE PURA. O filósofo, não tendo nada de próprio a pensar, satisfaz-se em respirar os zéfiros divinos provenientes das regiões ocidentais cultas, ricas, pensantes por direito natural. Algumas consequencias bizarras, e até cômicas, derivam dessa situaçaõ. NO PA´S SUBDESENVOLVIDO,´O FILÓSOFO, COMO SÓ REGISTRA O QUE FOI PENSADO E DITO NOS CENTROS METROPOLITANOS, PODE SER CHAMADO DE TABELIÃO DE IDÉIAS. A cultura, em conjunto, constitui o CARTÓRIO DOS CONHECIMENTOS ALHEIOS. Obrigado a colcionar e registrar os produtos do pensamento de origem externa, O FILÓFOSO NA VERDADE NUNCA CHEGA A SER UM ECRITOR; NÃO PASSA DE ESCREVENTE. Realmente, não escreve, porque NÃO CONSEGUE TER NADA DE ORIGINAL PRA DEIXAR ESCRITO. APENAS LAVRAM UMA ESCRITURA DO QUE OS OUTROS, OS SÁBIOS ESTRANGEIROS, DECLARAM PERANTE ELE. No país subdesenvolvido é impossível o surgimento de verdaeiros livros de filosofia. A verdade não consiste da descoberta de algum novo aspecto de ser, mas na fidedignidade das cópias e traslados dos documentos recebidos. A CULTURA É O CONJUNTO DOS REGISTROS DOS BENS INTELECTUAIS FIELMENTE REPRODUZIDOS, FABRICADOS POR PENSADORES DE FORA E APENAS ADQUIRIDOS POR NATIVOS COM ESPECIAL INCLINAÇÃO E SUFICIENTE TEMPO VAGO PARA SE DEDICAREM A ESSE GÊNERO DE DISSIPAÇÃO ESPIRITUAL. NÃO ÉPRECISO ACRECSENTAR QUE FAZEM DESSA PRERROGATIVA UM VALIOSO TÍTULO DE DESTAQUE SOCIAL. A ALIENAÇÃO TORNA-SE O MELHOR SINAL DA CAPACIDADE INTELECTUUAL. Brilha com mais nitidez esse papel egrégio se oo estudioso não se limitar à exclusiva atividade manducadora, mas se relevar um legítimo expoente do meio desprovido de auto-consciencia, engendrando livros, artigos de toda especie de publicações destinados a difundir o pensamento dos outros, o que é feito com grande satisfação pelos ressoadores indígenas, pois com esses documentos fica comprovado em registro com fé pública o seu concício com a ciência, as letras e as artes.(...)"

11.10.08

bibienal


O Melhor Mesmo É Ir Ao Museu
Para atender um público que quer diversão, só falta criarmos uma Fiba, Federação Internacional das Bienais. Mas aonde está a outra metade, a metade da arte?

Teixeira Coelho

"Nossas artes foram instituídas, e seus tipos e usos fixados, num momento bem diferente do nosso, por pessoas cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante perto do que temos hoje. Mas o surpreendente crescimento de nossos meios, a maleabilidade e precisão que alcançam, as idéias e hábitos que introduzem nos garantem mudanças próximas e profundas na antiga indústria do Belo."

Palavras de Paul Valéry em A Conquista da Ubiqüidade, de 1934, reproduzidas na última versão de A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamin, em 1939.

A certeza de que mudanças fortes estão acontecendo e trarão outras ainda mais impressionantes é uma constante histórica. O recurso à pintura a óleo foi uma revolução; a invenção da tela de pano como suporte, capaz de ser enrolada para viagem, outra e enorme. Com elas vieram novos hábitos e idéias. Não houve só mudanças técnicas. Pintar pessoas "iguais a nós" ou "piores do que nós" e não apenas as "melhores do que nós" (os santos, os heróis) foi revolucionário — e já em 1939, o filósofo alemão Walter Benjamin anotava: qualquer um podia aspirar a ser fotografado e filmado. O Belo mudou, como previa o poeta francês Paul Valéry — e sua indústria também.

E desde que as bienais surgiram, tudo mudou mais ainda. Tipos de arte, seus usos, suas instituições, idéias e hábitos. Quando a Bienal de São Paulo surgiu, em 1951, não havia TV ou vídeo; ver arte exigia viajar (de navio) e descobrir onde estava a coisa certa. Hoje, basta ligar o computador ou viajar rápido de avião, com passagem a prestação, para qualquer lugar. E se antes havia uma única bienal e só 56 anos depois, duas, com a de São Paulo, agora é uma por mês, quase. E hoje existem ainda as feiras, vocação secreta (nem tanto) das bienais enfim exposta à luz do dia.

As bienais foram criadas sob o signo da indústria, exatamente — como ilustra a de São Paulo —, posta num pavilhão de início pensado, duplo sinal, para as feiras industriais. Cada produto traz a marca do sistema de produção que o gerou, disse o Marx que ainda vale. As marcas do sistema em que a bienal surgiu são, uma, a idéia da arte (também ela) como produto industrial e, outra, adaptando Benjamin que não escrevia sobre bienal, a primeira grande crise da pintura (da arte). A pintura nunca pretendeu ser vista por mais do que um único espectador ou um pequeno grupo, o mesmo Benjamin anotou. Quando, no século 19 (Veneza abriu em 1895), um público numeroso começa a ver pintura (arte), surge o primeiro sintoma da crise da pintura (da arte), provocada não só pela chegada da fotografia, mas também pela pretensão (ou nova obsessão) da própria arte de dirigir-se às massas que surgiam.

A crise é grande, e o fracasso da pintura (da arte), nesses trilhos, é certo. O cinema, propõe o historiador inglês Eric Hobsbawm, é que realizará as promessas de inovação (de vanguarda) sugeridas pela arte na virada para o século 20. E é o cinema que se dirigirá às massas. A pintura (a arte), iludida, insiste em chegar ao grande número, num movimento animado pelos dirigismos ideológicos de direita e esquerda. E pelo dinheiro. Mas isso ela só pode fazer, ainda seguindo Benjamin, abdicando do que sempre havia sido seu, a contemplação, para, no lugar, oferecer distração. Mas entertainment é com o cinema. O resultado dessa obsessão, para a arte, é um desastre. Do lado da recepção, basta ver o que se passa com o grande público nos domingos de portas abertas na Bienal de São Paulo. Mais grave é o que ocorre na produção da arte, com a tendência sempre acentuada para a banalidade e a puerilidade que transformam muita bienal e feira de arte em Disneylândias da cabeça. Sete anos depois da criação da Bienal de São Paulo, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti falava de uma Coney Island do espírito. Ele se referia à própria poesia como um parque de diversões da mente, um circo da alma; mas sua Coney Island era uma ópera wagneriana comparada às Disneylândias de hoje, cheias das variantes da Animamix que brotam do Oriente e se espalham. Os Titãs têm razão: "A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte". Portanto, diversão tem vez. Mas a gente também quer arte. "A gente não quer só dinheiro/ A gente quer inteiro e não pela metade."

Onde está hoje a outra metade, a metade da arte? Nos ateliês e nas galerias, como sempre. Mais que isso, nos museus e análogos. Já que a música dá o tom, invoque-se Cazuza para dizer que "o tempo não pára/ Eu vejo um futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades". A arte melhor, o melhor modo de ver arte nos últimos tempos, a arte que se abre para a contemplação e por isso é outra vez novidade, está nos museus: no MoMA, de Nova York (mostrando Gerhard Richter), no Whitney, também em Nova York (Rothko), no Guggenheim (Bill Viola), no New Museum, no Museu D'Art Contemporani de Barcelona, no Reina Sofía de Madri, na Tate Modern e na Saatchi Gallery, em Londres, no Museu de Arte Contemporânea de Tóquio. Talvez tenha sido isso que o crítico americano Robert Storr quis sugerir quando levou o MoMA para dentro da Bienal de Veneza, no ano passado (mas o MoMA fica melhor dentro do MoMA). As grandes exposições nos museus são o mergulho na arte possível em tempos de massa (a massa do museu ainda não é a massa da bienal ou da feira).

Num primeiro momento, as bienais podem ter exercido as funções do Museu Mundial, Inc. que o novo tempo pedia. No Brasil, quando os museus estavam só na prancheta, a bienal foi uma franquia útil desse grande museu mundial. A distração que vinha nela gravada como marca do sistema (se não da indústria toda, sem dúvida da indústria cultural) era compensada pelo impacto do novo e pela transgressão, coisas que hoje sumiram. E, de todo modo, não havia por aqui a alternativa do museu. Hoje, o museu, e o museu mundial, retomou a dianteira. A bienal não pode competir com ele. Nem como fato de turismo.

Quanto ao futuro, da arte ou da bienal de arte, não a da distração, esse está então no passado — no museu, por enquanto. Porque o museu ainda não tem o mesmo compromisso com a indústria, com a quantidade, que a bienal e a feira têm. Museus têm muita arte — mas não a mostram de uma vez. A um museu se vai para ver uma obra, um artista. Não há por que temer o pequeno número, lembra o antropólogo indiano Appadurai Arjun. Não quando se quer arte. Mas quem quer arte, quem não teme o pequeno número? A maioria quer só cultura, e os políticos da cultura também; no máximo, querem a cultura da arte, da qual a distração é mola privilegiada por permitir as demagogias do "grande número". Hoje, o museu é preciso — mesmo que à custa da bienal, num país como o Brasil, sem recurso para tudo. Mesmo que ao museu vá cada vez mais gente. A bienal não é mais necessária. Difícil assumi-lo: exige independência de espírito diante da cultura, da indústria cultural, do politicamente correto.

A bienal pode manter-se, ainda, com arte? Caso se paute pelo modo de ação do museu, sim. (Muita bienal já se abre para a documentação, para a revisão.) Mas, nesse caso, bienal para quê? Como distração, pode manter-se indefinidamente. Espaçar sua periodicidade, em busca da legitimidade perdida, é inócuo. A redundância está na base do sistema, da indústria. A lógica dessa industry sugere que o futuro da bienal estaria numa Fiba, uma federação internacional das bienais de arte, como a Fifa, ou num CBI, um comitê bienalístico internacional, como o COI, que em congressos se decidiria onde, em quatro anos, se faria a próxima bienal mundial ou o mundial das bienais. Com cerimônia de abertura cinematográfica e tudo. (Não é simples coincidência que o Comitê Olímpico Internacional tenha sido criado em 1894, um ano antes da Bienal de Veneza: por trás de ambos os fenômenos, a mesma cultura, a mesma lógica.)

A arte contemporânea em larga medida virou acadêmica, o antropólogo francês Lévi-Strauss tem razão, e as bienais também. Cabe esperar uma arte e um lugar da arte outra vez abertos à contemplação, a alguma coisa mais vital que um produto da industry, num momento em que os artistas têm fábricas e escritórios empregando dezenas de pessoas entre pesquisadores, engenheiros, curadores próprios, advogados? Valéry pensava, naquele mesmo texto, que sim, que as mudanças inovariam maravilhosamente a noção de arte. Talvez. De todo modo, o maravilhoso hoje está, como paradoxo, no velho: no museu, muito mais que na indústria, quer dizer, na bienal, na feira. E nos análogos do museu, como as fundações de arte (a Pinault, em Veneza; a Beyeler, em Basiléia), igualmente baseadas nas idéias de coleção e seleção.

(Mas, claro, a gente sempre quer também diversão, não só arte...)


TEIXEIRA COELHO é crítico de arte e curador do Museu de Arte de São Paulo.

29.9.08


do livro o contraponto, aldous huxley:

"(...) - Mão devemos tomar a arte muito ao pé da letra. - lembrava-se walter do que seu cunhado, Philip Quarles, lha dissera uma noite em que estavam falando sobre poesia. - E especialmente no que diz respeito ao amor.

- Nem mesmo quando é verdadeira? - perguntara ele.

- A poesia pode ser demasiadamente verdadeira. Pura como água destilada. Quando a verdade não é nada senão a verdade, ela é antinatural; uma abstraçõ que nada tem se parece do mundo real. Na natureza há sempre tantas coisas estranhas misturadas à verdade essencial! Eis por que a arte nos comove: prcisamente porque está depurada de todas as impurezas da vida real. As orgias verdadeiras nunca são tão excitantes como os livros pornográficos. Num volume de Pierre Louis todas as raparigas são jovens e têm formas perfeitas; não há soluços nem bebedeira, nem mau hálito, nem fadiga, nem tédio, nem lembranças súbitas de contas a pagar ou de cartas comerciais a responder; nada disso para iterromper os arrebatamentos. A arte nos dá a sensação, o pensamento, o sentimento absolutamente puros; isto é, quimicamente puros. - E acrescentara uma risada - Não moralmente.

- Mas o Epipsychidon não é pornografia - objetara Walter.

Não, mas é igualmente puro sob o ponto de vista químico. Como é aquele soneto de shakespeare?

My Mistress's eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lip's red:
If snow be white, why thwn her breasts are dun;
If hair be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damasked, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is the more delight
Then in breath that from my my mistress reeks... (...)

22.9.08

sob a mesma lua


Matias Aires in Reflexões sobre a vaidade do homem



Só a vaidade sabe dar existência às coisas que a não têm, e nos faz idólatras de uns nadas, que não têm mais corpo que o que recebem do nosso modo de entender, e nos induz a buscarmos esses mesmos nadas, como meios de nos distinguir; sendo q nem "Deus", nem a natureza nos distinguiu nunca. Na lei universal ninguém ficou isento da dor, nem da tristeza: todos nascem sujeitos ao mesmo princípio, que é a vida, e ao mesmo fim, que é a morte; a todos compreende o efeito dos elementos; todos sentem ardor do sol, e o rigor do frio; a fome e a sede, o gosto e a pena, são comuns a tudo que respira: o "Autor" do mundo fez ao homem sobre uma mesma idéia uniforme, e igual, e na ordem com que dispôs a natureza não conheceu exceções, nem privilégios: nunca o homem pode ser mais nem menos do que homem; e por mais que a vaidade lhe esteja sugerindo uns certos atributos, ou certas qualidades, que o fazem parecer maior, e mais considerável, que os mais homens, essas mesmas qualidades, ainda sendo verdadeiras, sempre são imaginárias; porque também há verdades fantásticas, e compostas somente de ilusões.