1.7.08

O Espírito dos Neurônios


desenho (nanquim) do GIL VICENTE

O Espírito dos Neurônios

por Antonio Luiz M. C. Costa


Quem somos nós, seres humanos? Do ponto de vista da biologia, a pergunta tem uma resposta satisfatória desde os tempos de Charles Darwin. Somos primatas, parentes muito próximos dos outros homínidas, como o chimpanzé, o bonobo, o gorila e o orangotango. Mais de perto, mostra hoje a genética molecular, mais do que imaginavam os evolucionistas ainda na virada do milênio. Por extensão, somos primos mais distantes, em graus variáveis de parentesco, de todos os demais seres vivos conhecidos sobre a face da Terra.

Mas esta resposta não é completa. Por importantes que sejam o corpo e o código genético que o reproduz, nós também nos caracterizamos por algo que aparentemente não compartilhamos com outros seres vivos, ou compartilhamos apenas em pequena parte, inclusive com os mais próximos de nós. É a noção de existir com uma história passada, uma expectativa de futuro, uma relação com o mundo e com outros seres e também saber que se tem essa noção. Ou seja, aquilo que chamamos de consciência.

O biólogo Gerald Edelman propõe explicar a consciência pelo que chama de “darwinismo neural”. É importante esclarecer, de saída, que isso não é darwinismo social, sociobiologia ou psicologia evolucionária. Pelo contrário, se opõe à idéia de determinação da mente pela genética, defendida por muitos biólogos e geneticistas, como Francis Crick.

Para estes, os aspectos mais importantes da mente estão codificados no DNA, que determina a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso e hormonal e, por meio destes, as capacidades inatas, as tendências e os comportamentos individuais, incluindo inteligência, preferências sexuais e preconceitos raciais.

Edelman já venceu uma importante queda-de-braço intelectual com Francis Crick sobre tema análogo: o sistema imunológico. Contrariando as noções prevalecentes nos anos 60, segundo as quais os linfócitos (células do sistema imunológico) formavam “moldes” de substâncias estranhas a partir dos quais fabricavam os anticorpos, Edelman propôs que o sistema funciona por seleção.

Em cada linfócito, o gene para um anticorpo sofre variações por mutação e recombinação, de maneira que cada um dos 100 bilhões de linfócitos pode portar um anticorpo diferente. Quando um corpo estranho se encontra com um anticorpo que se ajusta, a célula que o porta recebe um sinal para se dividir e produzir mais desse anticorpo, neutralizando a invasão.

Francis Crick declarou a teoria absurda, dizendo que, caso estivesse errado, comeria o papel em que ela havia sido escrita. Mas Edelman tinha razão e, em 1972, sua teoria lhe rendeu o Prêmio Nobel de Medicina. Conta-se que, na cerimônia, entregou o resumo da tese a Crick, dizendo “maionese em mim”.

Hoje, mais uma vez contrariando Crick, o darwinismo neural que vem sendo desenvolvido por Edelman desde 1987 sustenta que, no essencial, a estrutura da mente não é fixada pela genética. Resulta de um processo de seleção que é análogo à seleção natural dos genes – e, por isso, é “darwinista” –, mas não determinado por eles.

Não é como a fábrica de Manaus, que monta o projeto de circuito eletrônico detalhado e enviado pela matriz. É mais como se a filial recebesse apenas uma lista de componentes que podem ser conectados de inúmeras maneiras diferentes e tivesse de construir o equipamento por experiência e erro, testando-o e adaptando-o às necessidades locais, fazendo concorrer entre si várias diferentes possibilidades.

É essencial a “degenerescência”, ou redundância, entre os módulos neuronais – ou seja, que módulos diferentes possam representar, aproximadamente, as mesmas formas, de maneira que possam concorrer entre si e ser comparados e selecionados.

A consciência propriamente dita forma-se quando, dessa interação entre tais módulos coordenada pela estrutura cerebral conhecida como hipocampo – processo que o autor chama de “reentrância” –, emerge uma experiência unitária das sensações que os filósofos chamam de qualia e são qualitativamente distintas das propriedades físicas dos estímulos: o verdor, o calor e assim por diante.

Animais como os cães, segundo Edelman, possuem apenas o que chama de consciência primária, limitada à representação global e imediata do ambiente, sem o conceito de passado, futuro e de um si-mesmo nomeável e a consciência de estar conscientes. A consciência secundária, rudimentar no chimpanzé e plena no ser humano, exige as capacidades semânticas e simbólicas de uma verdadeira linguagem dotada de sintaxe e capaz de ultrapassar o presente, permitindo aos atores representar a si mesmos [a arte hehe...] e elaborar estratégias de sobrevivência a longo prazo.

A concepção darwinista neural estende-se, vale notar, à linguagem, que Edelman considera uma invenção, por mais que isso contrarie o consenso de grande parte dos lingüistas contemporâneos em relação às teses de Noam Chomsky, que considera inatos os mecanismos da linguagem e os fundamentos da gramática.

Ao longo da vida e do aprendizado, neurônios distantes tendem a se unir por meio das ligações chamadas sinapses, quando são estimulados ao mesmo tempo. Essas conexões tendem a se tornar mais fortes ou mais fracas, conforme a experiência as reforça de maneira positiva ou negativa.

Naturalmente, é preciso, para começar, que haja propensões inatas a perceber certos resultados como positivos ou negativos. Por exemplo, que se sinta a dor como ruim e a satisfação da necessidade de alimento como boa. De resto, a formação de circuitos entre os neurônios – e, portanto, as ligações entre percepções, sentimentos, pensamentos e comportamentos – é determinada pela experiência, não pelos traços geneticamente herdados dos pais.

Dois gêmeos idênticos podem desenvolver conexões neurais bem diferentes, resultando em mentes diferentes. Tanto em hardware quanto em software, por assim dizer. No cérebro humano essas noções não são tão distintas quanto em um microprocessador e as analogias podem ser enganosas: no ser humano, a informação está, na maior parte, na própria “fiação”.

Edelman fala, por isso, de Segunda Natureza, título de seu livro de 2006. A expressão, mais comum em inglês do que em português, refere-se a hábitos e habilidades que se adquirem pela prática a ponto de ser praticados sem necessidade de esforço consciente – como dirigir em condições normais, para um motorista experiente – e parecerem inatos, até mesmo “instintivos”.

Sua visão da consciência talvez seja comparável à concepção da natureza humana por Karl Marx, tal como analisada pelo cientista político britânico Norman Geras. Baseia-se na distinção entre a natureza humana “em geral”, constituída de necessidades e impulsos (inclusive de viver em comunidade e controlar o ambiente) que conduzem ao bem-estar e a natureza humana modificada e transformada em cada época histórica pelas circunstâncias.

É essa natureza humana que explica o movimento geral da história e os antagonismos de classe, e é nos termos da medida em que essa natureza se torna simples instrumento do capital e deixa de desenvolver seu potencial que se pode falar em alienação e criticar um sistema social. Se ela fosse infinitamente maleável, não haveria como dizer que uma condição é melhor ou pior do que outra. Se fosse inteiramente determinada pela genética, não haveria como promover mudanças qualitativas na condição humana.

Por ver a consciência como conseqüência natural das funções cerebrais em nível celular, a concepção de Edelman é claramente oposta à de Descartes e de todo dualismo, inclusive na versão contemporânea do matemático Roger Penrose, que atribui a supostos fenômenos quânticos subcelulares um papel crucial na formação da consciência e da capacidade humana de transcender a lógica formal.

Também se opõe ao materialismo reducionista de Francis Crick, que vê o cérebro como um computador no sentido mais estrito da palavra, ou seja, como uma máquina de Turing, um executor de algoritmos passível de ser modelado por uma rede de processamento paralelo.

Edelman não rejeita a possibilidade de construir uma verdadeira consciência artificial e dedica muito de seus esforços a essa pesquisa e à construção dos artefatos da série Darwin, que procura simular o seu modelo de funcionamento cerebral.

Não se trata de robôs tais como têm sido definidos e fabricados na vida real, ou seja, máquinas programáveis que seguem uma seqüência de instruções. São máquinas evolucionárias, mais parecidas com os robôs da ficção científica do que com os das fábricas. Nenhuma função é predefinida e suas conexões “sinápticas” iniciais são distribuídas ao acaso. Em vez de ter um programa definido, os “cérebros” desenvolvem categorias perceptuais com base em sua experiência do mundo real percebida como positiva ou negativa, em função da qual constroem sistemas de memória apropriados. [medo! o.O]

A partir de sua concepção de darwinismo neural, Edelman propõe também uma “epistemologia baseada no cérebro”, ou neuroepistemologia, na qual o reconhecimento de padrões precede a lógica, fontes múltiplas e heterogêneas de conhecimento precisam ser levadas em conta e a experiência emocional é essencial à sua aquisição. É uma radicalização da proposta do filósofo estadunidense Willard Quine de “naturalizar a epistemologia” que, focada nos sentidos e na física, deixa de levar em conta o funcionamento interno do sistema nervoso e a intencionalidade, ou seja, a noção de que os estados mentais, crenças ou desejos se referem a objetos além da própria consciência, existentes ou não.

Além disso, de certa maneira, Edelman posiciona-se em um meio-termo no debate do filósofo John Searle com o colega Daniel Dennett sobre os qualia. Searle afirma que os estados de consciência são intrinsecamente subjetivos e irredutíveis a qualquer definição ou explicação pelas ciências naturais, cuja formulação estaria ancorada no ponto de vista da terceira pessoa. Dennett, apoiado em programas de pesquisa em neurociências e inteligência artificial, adota uma teoria reducionista, que equipara o cérebro a um computador e a consciência a um software passível de ser analisado cientificamente, na terceira pessoa.

Para Dennett, “postular qualidades internas especiais que são não apenas privadas e intrinsecamente valiosas, mas também que não podem ser confirmadas nem investigadas, é apenas obscurantismo” e os qualia são apenas um julgamento errôneo sobre o que de fato acontece.

Edelman admite a realidade dos qualia, mas não a sua relevância. A ênfase na neurologia o leva a tentar explicar a consciência apenas em termos do cérebro individual, sem levar suficientemente em conta o papel da interação com o ambiente, principalmente o meio social. Isso o levou a considerá-la como um epifenômeno, ou seja, um efeito colateral do funcionamento do cérebro e da linguagem que não tem conseqüências causais próprias – assim como a hemoglobina (exemplo dele) se torna vermelha quando se liga a uma molécula de oxigênio, mas isso não faz diferença para suas propriedades químicas.

Mas Edelman cai em contradição ao escrever, em outra passagem, como notaram leitores atentos, que a consciência “nos informa de nossos estados cerebrais e é assim central ao nosso entendimento”. Quem é esse “nós” que parece diferente tanto do cérebro físico quanto do processo de consciência?

O biólogo Steven Rose, resenhista do jornal britânico The Guardian, sugeriu que, se não se quiser voltar a cair no dualismo cartesiano, é preciso ver na consciência um processo que emerge das interações dos portadores dos cérebros entre si e com o ambiente e não apenas entre os módulos cerebrais.

No blog Automates Intelligents, o francês Jean-Paul Baquiast, economista e especialista em inteligência artificial, notou o mesmo impasse e aponta para saída semelhante. Seu exemplo é um humano que, ao passar por uma floresta e pressentir um predador, adverte seus companheiros, justamente porque sua consciência secundária, ou superior, pôde representar a situação geral do grupo e decidir intervir por meio de um discurso adequado.

Mesmo numa situação solitária, a voz interior da consciência secundária, ao representar o perigo para si mesma em palavras, ajuda a consciência imediata a mobilizar seus recursos para a luta ou a fuga, mostrando-se assim não um mero epifenômeno, mas um processo útil à sobrevivência do indivíduo e seu grupo. Além de ser um ponto de partida para toda a aventura intelectual, sentimental e espiritual da vida humana e da história da humanidade.