FERREIRA GULLAR: (em 2005..)
Ainda aluna de medicina, Nise da Silveira se horrorizou ao ver o professor abrir com um bisturi o corpo de uma jia e deixar à mostra, pulsando, seu pequenino coração. Saiu da sala para vomitar.
Esse fato define a mulher que iria revolucionar o tratamento da esquizofrenia e pôr em questão alguns dogmas estéticos em vigor mesmo entre artistas antiacadêmicos e críticos de arte.
A mesma sensibilidade à flor da pele que a fez deixar, horrorizada, a aula de anatomia a levou a se opor ao tratamento da esquizofrenia em voga na época em que se formou: o choque elétrico, o choque insulínico, o choque de colabiosol e, pior do que tudo, a lobotomia, que consistia em secionar uma parte do cérebro do paciente. Tomou-se de revolta contra tais procedimentos, negando-se a aplicá-los nos doentes a ela confiados. Foi então que o diretor do hospital, seu amigo, disse-lhe que não poderia mantê-la no emprego, a não ser em outra atividade que não envolvesse o tratamento médico. - Mas qual?, perguntou ela. - Na terapia ocupacional, respondeu-lhe o diretor.
A terapia ocupacional, naquela época, consistia em pôr os internados para lavar os banheiros, varrer os quartos e arrumar as camas. Nise aceitou a proposta e, em pouco tempo, em lugar de faxina, os pacientes trabalhavam em ateliês improvisados pintando, desenhando, fazendo modelagem com argila e encadernando livros. Desses ateliês saíram alguns dos artistas mais criativos da arte brasileira, cujas obras passaram a constituir o hoje famosíssimo Museu de Imagens do Inconsciente do Centro Psiquiátrico Nacional, situado no Engenho de Dentro, no Rio.
É que sua visão da doença mental diferia da aceita por seus companheiros psiquiatras. Enquanto, para estes, a loucura era um processo progressivo de degenerescência cerebral, que só se poderia retardar com a intervenção direta no cérebro, ela via de outro modo, confiando que o trabalho criativo e a expressão artística contribuiriam para dar ordem e equilíbrio ao mundo subjetivo e afetivo tumultuado pela doença. Isto, no começo, foi pura intuição, que ganhou consistência teórica graças aos ensinamentos de Jung, sua teoria do inconsciente coletivo e das mandalas como formas arquetípicas da expressão.
Por isso mesmo acredito que o elemento fundamental das realizações e das concepções de Nise da Silveira era o afeto, o afeto pelo outro. Foi por não suportar o sofrimento imposto aos pacientes pelos choques que ela buscou e inventou um outro caminho, no qual, em vez de ser vítima da truculência médica, o doente se tornou sujeito criador, personalidade livre capaz de criar um universo mágico em que os problemas insolúveis arrefeciam.
No final dos anos 50, eu era chefe do copidesque do "Jornal do Brasil", quando certa noite recebi um telefonema da dra. Nise. Ela pedia apoio para uma iniciativa sua que estava sendo hostilizada por outros médicos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro. É que, tendo observado a melhora no comportamento de um internado ao conquistar o afeto de um cão que aparecera no hospital, ela decidira levar outros cães para possibilitar esse relacionamento afetivo com outros internados.
De fato, eles passaram a cuidar dos animais, a brincar com eles, tornando-se mais alegres e afáveis. Alguns médicos, porém, consideraram aquilo uma ofensa à psiquiatria e à sua condição de doutores, uma vez que substituía os métodos científicos de tratamento pelo convívio com cachorros. Alguns dos cães apareceram mortos, envenenados. A publicação da notícia serviu para que parassem de matar os animais.
O trabalho dela sempre gerou polêmicas. A revelação, nos ateliês de terapia ocupacional, de alguns artistas de extraordinário talento, logo exaltados por Mário Pedrosa, nunca foi um assunto pacífico. Muitos críticos e artistas de renome negavam-se a admitir que doentes mentais fossem capazes de fazer arte. Na opinião deles, as pinturas e desenhos de Emygdio de Barros, Rafael ou Fernando Diniz não passavam de criações mórbidas, sem qualquer mérito artístico.
De fato, mero preconceito fundado em razões ora ideológicas ora esteticistas, que os impedia de enxergar a beleza e a expressividade daquelas obras. Tal preconceito foi, até certo ponto, atenuado com o tempo, mas é verdade também que, mesmo hoje, quando se fala de arte brasileira, esses artistas não contam e, se contam, é como um caso à parte.
Deve-se dizer, a bem da verdade, que não era propósito da dra. Nise, ao realizar aquele trabalho terapêutico, produzir artistas. Na sua concepção, a linguagem não-verbal das artes plásticas possibilitava aos doentes mentais expressar vivências conflituais complexas e, graças a isso, reorganizar seu mundo subjetivo, fornecendo ao mesmo tempo ao estudioso da esquizofrenia elementos reveladores daquilo que Antonin Artaud definira como "os inumeráveis estados do ser".
Comemora-se neste ano o centenário de nascimento dessa mulher, que soube ser, durante toda a vida, brava, doce e generosa.