11.10.08

bibienal


O Melhor Mesmo É Ir Ao Museu
Para atender um público que quer diversão, só falta criarmos uma Fiba, Federação Internacional das Bienais. Mas aonde está a outra metade, a metade da arte?

Teixeira Coelho

"Nossas artes foram instituídas, e seus tipos e usos fixados, num momento bem diferente do nosso, por pessoas cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante perto do que temos hoje. Mas o surpreendente crescimento de nossos meios, a maleabilidade e precisão que alcançam, as idéias e hábitos que introduzem nos garantem mudanças próximas e profundas na antiga indústria do Belo."

Palavras de Paul Valéry em A Conquista da Ubiqüidade, de 1934, reproduzidas na última versão de A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamin, em 1939.

A certeza de que mudanças fortes estão acontecendo e trarão outras ainda mais impressionantes é uma constante histórica. O recurso à pintura a óleo foi uma revolução; a invenção da tela de pano como suporte, capaz de ser enrolada para viagem, outra e enorme. Com elas vieram novos hábitos e idéias. Não houve só mudanças técnicas. Pintar pessoas "iguais a nós" ou "piores do que nós" e não apenas as "melhores do que nós" (os santos, os heróis) foi revolucionário — e já em 1939, o filósofo alemão Walter Benjamin anotava: qualquer um podia aspirar a ser fotografado e filmado. O Belo mudou, como previa o poeta francês Paul Valéry — e sua indústria também.

E desde que as bienais surgiram, tudo mudou mais ainda. Tipos de arte, seus usos, suas instituições, idéias e hábitos. Quando a Bienal de São Paulo surgiu, em 1951, não havia TV ou vídeo; ver arte exigia viajar (de navio) e descobrir onde estava a coisa certa. Hoje, basta ligar o computador ou viajar rápido de avião, com passagem a prestação, para qualquer lugar. E se antes havia uma única bienal e só 56 anos depois, duas, com a de São Paulo, agora é uma por mês, quase. E hoje existem ainda as feiras, vocação secreta (nem tanto) das bienais enfim exposta à luz do dia.

As bienais foram criadas sob o signo da indústria, exatamente — como ilustra a de São Paulo —, posta num pavilhão de início pensado, duplo sinal, para as feiras industriais. Cada produto traz a marca do sistema de produção que o gerou, disse o Marx que ainda vale. As marcas do sistema em que a bienal surgiu são, uma, a idéia da arte (também ela) como produto industrial e, outra, adaptando Benjamin que não escrevia sobre bienal, a primeira grande crise da pintura (da arte). A pintura nunca pretendeu ser vista por mais do que um único espectador ou um pequeno grupo, o mesmo Benjamin anotou. Quando, no século 19 (Veneza abriu em 1895), um público numeroso começa a ver pintura (arte), surge o primeiro sintoma da crise da pintura (da arte), provocada não só pela chegada da fotografia, mas também pela pretensão (ou nova obsessão) da própria arte de dirigir-se às massas que surgiam.

A crise é grande, e o fracasso da pintura (da arte), nesses trilhos, é certo. O cinema, propõe o historiador inglês Eric Hobsbawm, é que realizará as promessas de inovação (de vanguarda) sugeridas pela arte na virada para o século 20. E é o cinema que se dirigirá às massas. A pintura (a arte), iludida, insiste em chegar ao grande número, num movimento animado pelos dirigismos ideológicos de direita e esquerda. E pelo dinheiro. Mas isso ela só pode fazer, ainda seguindo Benjamin, abdicando do que sempre havia sido seu, a contemplação, para, no lugar, oferecer distração. Mas entertainment é com o cinema. O resultado dessa obsessão, para a arte, é um desastre. Do lado da recepção, basta ver o que se passa com o grande público nos domingos de portas abertas na Bienal de São Paulo. Mais grave é o que ocorre na produção da arte, com a tendência sempre acentuada para a banalidade e a puerilidade que transformam muita bienal e feira de arte em Disneylândias da cabeça. Sete anos depois da criação da Bienal de São Paulo, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti falava de uma Coney Island do espírito. Ele se referia à própria poesia como um parque de diversões da mente, um circo da alma; mas sua Coney Island era uma ópera wagneriana comparada às Disneylândias de hoje, cheias das variantes da Animamix que brotam do Oriente e se espalham. Os Titãs têm razão: "A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte". Portanto, diversão tem vez. Mas a gente também quer arte. "A gente não quer só dinheiro/ A gente quer inteiro e não pela metade."

Onde está hoje a outra metade, a metade da arte? Nos ateliês e nas galerias, como sempre. Mais que isso, nos museus e análogos. Já que a música dá o tom, invoque-se Cazuza para dizer que "o tempo não pára/ Eu vejo um futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades". A arte melhor, o melhor modo de ver arte nos últimos tempos, a arte que se abre para a contemplação e por isso é outra vez novidade, está nos museus: no MoMA, de Nova York (mostrando Gerhard Richter), no Whitney, também em Nova York (Rothko), no Guggenheim (Bill Viola), no New Museum, no Museu D'Art Contemporani de Barcelona, no Reina Sofía de Madri, na Tate Modern e na Saatchi Gallery, em Londres, no Museu de Arte Contemporânea de Tóquio. Talvez tenha sido isso que o crítico americano Robert Storr quis sugerir quando levou o MoMA para dentro da Bienal de Veneza, no ano passado (mas o MoMA fica melhor dentro do MoMA). As grandes exposições nos museus são o mergulho na arte possível em tempos de massa (a massa do museu ainda não é a massa da bienal ou da feira).

Num primeiro momento, as bienais podem ter exercido as funções do Museu Mundial, Inc. que o novo tempo pedia. No Brasil, quando os museus estavam só na prancheta, a bienal foi uma franquia útil desse grande museu mundial. A distração que vinha nela gravada como marca do sistema (se não da indústria toda, sem dúvida da indústria cultural) era compensada pelo impacto do novo e pela transgressão, coisas que hoje sumiram. E, de todo modo, não havia por aqui a alternativa do museu. Hoje, o museu, e o museu mundial, retomou a dianteira. A bienal não pode competir com ele. Nem como fato de turismo.

Quanto ao futuro, da arte ou da bienal de arte, não a da distração, esse está então no passado — no museu, por enquanto. Porque o museu ainda não tem o mesmo compromisso com a indústria, com a quantidade, que a bienal e a feira têm. Museus têm muita arte — mas não a mostram de uma vez. A um museu se vai para ver uma obra, um artista. Não há por que temer o pequeno número, lembra o antropólogo indiano Appadurai Arjun. Não quando se quer arte. Mas quem quer arte, quem não teme o pequeno número? A maioria quer só cultura, e os políticos da cultura também; no máximo, querem a cultura da arte, da qual a distração é mola privilegiada por permitir as demagogias do "grande número". Hoje, o museu é preciso — mesmo que à custa da bienal, num país como o Brasil, sem recurso para tudo. Mesmo que ao museu vá cada vez mais gente. A bienal não é mais necessária. Difícil assumi-lo: exige independência de espírito diante da cultura, da indústria cultural, do politicamente correto.

A bienal pode manter-se, ainda, com arte? Caso se paute pelo modo de ação do museu, sim. (Muita bienal já se abre para a documentação, para a revisão.) Mas, nesse caso, bienal para quê? Como distração, pode manter-se indefinidamente. Espaçar sua periodicidade, em busca da legitimidade perdida, é inócuo. A redundância está na base do sistema, da indústria. A lógica dessa industry sugere que o futuro da bienal estaria numa Fiba, uma federação internacional das bienais de arte, como a Fifa, ou num CBI, um comitê bienalístico internacional, como o COI, que em congressos se decidiria onde, em quatro anos, se faria a próxima bienal mundial ou o mundial das bienais. Com cerimônia de abertura cinematográfica e tudo. (Não é simples coincidência que o Comitê Olímpico Internacional tenha sido criado em 1894, um ano antes da Bienal de Veneza: por trás de ambos os fenômenos, a mesma cultura, a mesma lógica.)

A arte contemporânea em larga medida virou acadêmica, o antropólogo francês Lévi-Strauss tem razão, e as bienais também. Cabe esperar uma arte e um lugar da arte outra vez abertos à contemplação, a alguma coisa mais vital que um produto da industry, num momento em que os artistas têm fábricas e escritórios empregando dezenas de pessoas entre pesquisadores, engenheiros, curadores próprios, advogados? Valéry pensava, naquele mesmo texto, que sim, que as mudanças inovariam maravilhosamente a noção de arte. Talvez. De todo modo, o maravilhoso hoje está, como paradoxo, no velho: no museu, muito mais que na indústria, quer dizer, na bienal, na feira. E nos análogos do museu, como as fundações de arte (a Pinault, em Veneza; a Beyeler, em Basiléia), igualmente baseadas nas idéias de coleção e seleção.

(Mas, claro, a gente sempre quer também diversão, não só arte...)


TEIXEIRA COELHO é crítico de arte e curador do Museu de Arte de São Paulo.